sexta-feira, 18 de novembro de 2005

A “boniteza” dos muitos brasis


Eis aí um texto que nos foi enviado pela Anésia, leitora e amiga do EntreTextos...

Profª Ms. Anésia Maria Costa Gilio[1]
Faculdades Integradas Maria Thereza[2]

Freire (1997), criou a expressão “boniteza” uma palavra que encerra encantamento e respeito por sua origem. Com um sotaque nordestino em um falar calmo, repleto de serenidade, paciência e tolerância, este educador brasileiro reconhecido internacionalmente, nunca apequenou a vida. Dizia que educar não é uma proposta de escola, mas sim, uma proposta de vida. Foi a admiração por este educador que me fez perceber a vida maior e buscar a responsabilidade que esta percepção representava e representa. Buscando, sustentação nos escritos deste educador, encontrei o que buscava: educar e educar-se é dar significado a cada ato do cotidiano. Como, então, dar significado ao fazer pedagógico universitário sem possibilitar ao graduando a percepção da boniteza dos muitos brasis? Isso porque, falar de Brasis é diferente de viver os muitos Brasis. Contar que no Piauí existe um alimento denominado “Chá de burro” ou “Mingau Maranhense”, provoca risos e questionamentos, mas possibilitar a este graduando conhecer a realidade vivida nesta região, um dos Brasis, e provar o sabor deste alimento, faz dos risos, sorrisos resultados do sabor do saber.
Este artigo é, portanto, um registro do aprendizado que o Programa Alfabetização Solidária possibilitou aos sujeitos acadêmicos na parceria PAS/FAMATh.

O objeto foi brincar com o conhecimento construído na relação de diferentes culturas. Entendendo que o termo brincar, não faz deste assunto uma ação menor, pelo contrário, segundo Alves (2003), brincar é difícil. Mais difícil, ainda, é lidar com a diferença de forma bem humorada, elevando o conhecimento do outro ao respeito que ele merece, vivendo com intensidade afetiva a percepção do inacabamento individual.
Esta intensidade afetiva é percebida principalmente na hospedagem. Na maioria dos municípios não existem pousadas ou hotéis. Somos acolhidos em residências de sujeitos sociais solidários. Dormimos nas camas das crianças, na cama de casal da dona da casa, a continuidade das visitas faz destes espaços, nossos. “Venha seu quarto já está arrumado”. “Coloque a mala no seu quarto”. “Professora, esta menina já pertence ao município”. “Quando vocês voltam? Já estamos com saudade”. “Alô! Aqui é de Jardim do Mulato, queremos saber se Vivian chegou bem?” “Alô, aqui é de Campo Redondo, a Carolina já chegou aqui e a mãe dela ligou dizendo que os exames médicos que ela fez semana passada acusaram hepatite, estamos cuidando dela e recomendaremos este mesmo cuidado para a companhia aérea, não se preocupe, ela está bem”. Ações como estas, merecem reflexão, são raras nos grandes centros urbanos. Valcileia Souza Cardoso, Coordenadora Setorial desta IES, define: “acolhida farta e solidária no sentido mais amplo: as pessoas abrem suas casas para pessoas que não conhecem e as acolhem com carinho, respeito e alguns até com orgulho. Deixamos nossas famílias para desenvolver um trabalho solidário, mas na realidade a solidariedade consolidada está no aconchego das pessoas dos municípios parceiros”.
Uma afetividade que emociona o ouvinte, “estive durante toda a noite pastoreando meu filho, ele está doente.” Ou “todos vão se banhar em uma espécie de cachoeira que é formada quando o açude sangra.” Estas expressões usadas no Rio Grande do Norte, relacionam filhos a ovelhas e o transbordamento das águas do açude, ao fluxo que sustenta o corpo. Resgatando o discurso do Sr. Genivaldo de Sergipe devo afirmar que Mães pastoreando filhos e açude sangrando são expressões da “Peiga”, muito boas! Quanta boniteza! No sudeste, mais precisamente nos grandes centros urbanos, existem rios e mar. Se o rio transborda é enchente, motivo de transtorno, casas invadidas, perdas materias, lamentação! Quando as águas do mar crescem é ressaca, festejada pelos surfistas que adentram as águas com suas pranchas e lamentada por muitos que residem na orla, pelos danos causados pela força com que as águas cobrem toda a faixa de areia. Bem perto de mim, está a Baía da Guanabara (RJ), águas poluídas em que circulam embarcações de diferentes portes. Nestas águas Iemanjá é homenageada na passagem de um ano para outro; competições esportivas e passeios turísticos são constantes, mas o respeito que o povo do nordeste tem pelo por suas águas, mares, rios e açude não se vê no sudeste. Neste exercício reflexivo sobre a relação não respeitosa com as águas do sudeste existe a intenção de “chamegar” estas pessoas, expressão usada em Sergipe que significa “sacudir” o sujeito, chamar sua atenção para o dito ou percebido. Já o povo do nordeste, merece um “cheiro”, um carinho, um abraço.
Este povo tem mesa farta, faz a feira toda semana. Nas feiras são comercializados produtos regionais, o produtor leva sua produção para vender e compra o que o outro produz. Estas feiras que acontecem uma vez na semana reúnem as, quase extintas, “feiras livres” do sudeste que vendem frutas, legumes e verduras, como muitos outros estabelecimentos comerciais, sacolões, açougues, peixarias, armarinhos, sapatarias, lojas de roupas e de brinquedos. Em Sergipe os dias de feira são como festas nas cidades. Os meios de transporte mais comuns são cavalos, “pau de arara” caminhões com muitos bancos de madeira espalhados pela carroceria, moto-taxi e “topiques” denominação para todos transportes coletivos menores que ônibus, independente da marca do veículo, os ônibus são poucos geralmente usados para transporte escolar.
Retornando à mesa farta, a visita que “come pouco”, provoca tristeza no anfitrião. Muitas são as exclamações: “Ela não gostou da comida!” “Ela come pouco!” “Prova!” Esta última proposta está sustentada na diferença alimentar existente nos muitos brasis, como: capote - galeto; Baião de dois é feijão com arroz, esta definição é simplista para a diferença existente, isso porque, o arroz é cozido no caldo do feijão, assim o prato servido é solto com arroz puro, só que misturado aos grãos de arroz estão os grãos de feijão; cuscus é feito com milho amarelo, substitui o pão ou a torrada do sudeste, é servido acompanhado de carne, ovos, manteiga etc. O Cuscus do sudeste é um doce branco com coco e muitos acrescentam leite condensado, não combina com os acompanhamentos do Cucus do nordeste; a canjica, também, do milho amarelo, quando quente é consumida com colher, como um mingau. Fria é cortada em quadradinhos e servida aos pedaços; a canjica do sudeste é feita com o milho branco e pode ser feita com coco ou amendoim, é um alimento comum no período da páscoa, no nordeste o alimento que se aproxima dela é o mugunzá que também é feito com o milho amarelo. Em Sergipe o cuscus é usado diariamente, os demais alimentos feitos com o milho amarelo são mais freqüentes no período do “São João” como são chamadas as festas juninas. Cabe destacar, ainda, que na noite de São João, são assados milhos, nas fogueiras montadas na frente das casas, e cada pessoa que passa conversa um pouco, come um pedaço de milho assado e segue o caminho para dançar o forró até o dia amanhecer.
A parceria das Faculdades Integradas Maria Thereza com o Programa Alfabetização Solidária, portanto, rejeita o rótulo de sujeitos envolvidos em ensinar jovens e adultos a ler e escrever. Esta parceria trabalha cidadania no processo de ensinar e aprender, movimento que dificulta definir em que momento se ensina e em que momento se aprende. Prova deste aprendizado começa na distribuição do material didático, quando no Rio Grande do Norte, hidrocor é caneta de álcool; lápis de cor é coleção; apontador é lapiseira. No Piauí tampa de caneta é bocal; papel pardo é papel madeira. Estas diferenças causam surpresas e aprendizado rápido, uns se apropriam dos termos usados pelos outros e as trocas não mais surpreendem porque o significado está definido.

A “boniteza” dos muitos brasis, entretanto, exigiu desta parceria FAMATh um trabalho de cidadania bem definido de como é preciso aprender. A partir dos discursos dos alfabetizadores e alfabetizandos iniciam-se os estudos nos municípios, com continuidade na IES. Foi estabelecida, então, uma parceria com as Secretarias de Saúde, a cada módulo os alfabetizadores são apresentados a esta secretaria e recebem um treinamento sobre doenças mais freqüentes na localidade e formas de prevenção. Este trabalho é estendido a todos os postos de saúde dos municípios. Estas ações surgiram em função da rejeição que as pessoas tem aos ensinamentos dos agentes de saúde: -“Já vem esse povo da saúde dizer que a gente tem que fazer tudo diferente do que sempre fez.” Foi percebido pelo grupo de trabalho desta IES que os alfabetizadores transformam-se em referências de alfabetizandos, são ouvidos e se fazem cúmplices nas alegrias, tristezas, facilidades e dificuldades. Assim, os valores foram invertidos, os alfabetizadores aprendem, contam para seus alunos o que aprenderam, mas não contam tudo. Apontam dúvidas, acionam a curiosidade e questionam a necessidade da visita dos representantes da saúde. Assim, a realidade está sendo transformada.
Na IES estuda-se diante das necessidades percebidas: verminose, muitos alfabetizandos não tem vaso sanitário em casa, grande problema de muitos municípios, qualidade da água, como limpar o filtro, lamentavelmente, também, poucos tem filtro; as representantes da IES foram com os alfabetizadores na estação de tratamento de água de um destes municípios para se certificarem da qualidade desta água; exame da água que alfabetizandos usam em comum acordo com uma fábrica está sendo providenciado; maiores informações sobre sindicato rural, questão que merece atenção em outro município; pesquisa sobre o tratamento dentário divulgado pelo governo federal; sugestões de atividades para serem desenvolvidas com as crianças do PETI, integração de alfabetizadores e alfabetizandos em projetos sociais desenvolvidos com crianças e jovens, quando toda a comunidade faz uso da biblioteca fornecida pelo PAS; a prefeitura de um município promoveu exame oftalmológico para todos os alfabetizando e forneceu óculos a todos os necessitados, a representação da IES tinha conseguido doação de armações de óculos para contribuir, mas não foram necessárias; estamos, também, testando uns óculos que são vendidos nas óticas, para faixa etária diferenciadas, portanto, comercialização autorizada, que só servem para ler e escrever, assim poderemos comprar para doar. Diante de todo este aprendizado, percebe-se que a boniteza está, também, no movimento de transformação da realidade que está posta, assim foi organizado por graduandos dos Cursos de Ciências Biológicas e Biologia Marinha desta IES, um evento denominado espaço de ações dialógicas, quando aconteceram palestras e mini-cursos. Cada participante pagou cinco reais de inscrição. O valor arrecadado foi destinado à compra de um contêiner para recolher alumínio, está sendo feita pesquisa de preços para efetuar a compra. O dinheiro arrecadado com a venda do alumínio será dividido em duas partes, uma para investimentos nos laboratórios dos cursos envolvidos e a outra para comprar óculos, filtros de barro (talha), vasos sanitários e tudo o mais que for necessário.

Sobre este último, questionei em sala de aula de um município, quantos deles não tinham vaso sanitário em casa e uma senhora respondeu: - “eu tenho, mas não uso”. Imediatamente perguntei porque e continuando ela disse: -“carrego água para cozinhar, tomar banho e lavar roupas, não vou carregar também para o vaso sanitário, prefiro não usar”. Continuei a conversa sustentada na leitura de vida de quem nasceu em uma casa com este conforto, dizendo que ela poderia usar a água que lava a roupa e ela com o olhar repleto de afetividade completou: “- Não é tão fácil assim, professora!” Pedi desculpas, resgatei a canção que diz “quem sabe da quentura da panela é a colher” e concordei com ela, porque realmente é muito fácil para quem tem água na torneira dizer o que fazer a quem não tem.

No meu lar refletindo sobre a deselegância de minha postura, lembrei que na minha infância muitas vezes minha família ficou sem água na torneira e carregávamos água inclusive para o vaso sanitário. A proposta que fiz, então, estava sustentada na minha história de vida. O que esqueci de fazer foi o exercício de avaliação que sempre proponho para os meus alunos, percebi que muitas vezes minhas ações não acompanham o discurso, parti de meus valores para criar critério de valor para o outro, quanto que avaliar é reeducar o olhar, é perceber o outro a partir dos valores dele. Na minha casa carregar água para o que entendíamos ser o básico da higiene coletiva era sustentado nos nossos valores, na maior parte do tempo tínhamos água encanada. Aquela senhora nunca teve este conforto, seus valores são outros e muito me ensinou, porque ela conseguiu viver o meu discurso, esvaziou-se de seus valores e me respondeu com afetividade, me ensinou e o título de professora era meu. Usar o vaso sanitário e dar descarga em seguida é uma ação que pertence ao meu cotidiano desde que nasci, nunca me preocupei com este mecanismo, era tão natural, mas quando voltei me surpreendi algumas vezes admirando o conforto desta ação, admirar para Freire é olhar de forma diferente, é olhar outra vez. É esta a forma de não apequenar a vida é a percepção do inacabamento, é fazer-se feliz com o erro, porque este está no caminho de busca para o acerto responsável, consciente e participativo.

Esta boniteza dos muitos brasis foi, portanto, um registro de aprendizados vividos de forma muito próxima sem relacionar os problemas denunciados aos municípios de origem, percebido como uma questão ética.
Retomando o movimento de brincar com palavras, convido o (a) leitor (a) a saborear um pão cheio - cachorro quente com carne moída ou um jacozinho com manteiga - pão francês, por que estas diferenças não são “guerra” ou “hagar”, não são a sério, são só brincadeiras. Sobre esta última resgato duas, jogar peteca é jogar bola de gude e o estilingue é baladeira, depois de muito brincar, proponho um banho de supapo, principalmente se a preferência for por banho quente, coisa rara no nordeste e muito comum no sudeste, assim o banho citado é banho de balde. Se ao entrar no banheiro para o banho encontrar uma perereca, peça que alguém ajude, tirando a gia de lá. Após o banho se vista para ficar “fechosa”, bem vestida, se a combinação de cores não ficar bem, no Rio Grande do Norte não diga que está brega como se afirma no sudeste, você poderá estar sendo muito indelicado (a) e levar um carão, ser chamado a atenção. Mas se esquecer este detalhe, diga que está de manchete, significa que está de fingimento.
Concluo este artigo reportando-me a Freire (1997), quando afirma que a boa escola é aquela que ensina a pensar, que não existe, portanto, uma proposta de escola, mas uma proposta de vida. O exercício de pensar, questionar, inquietar-se é o que existe de real para não se apequenar a vida. Assim cada sujeito que dedica sua vida ao saber científico precisa conhecer a boniteza dos muitos brasis para se perceber impregnado da sabedoria de um povo que pastoreia os filhos adoentados e que se banha na cachoeira formada quando o açude sangra e principalmente com aqueles que descobrem que “dia” é uma palavra muito pequena para um tempo que se faz muita coisa. Não existe, então, saber mais ou saber menos o que existe são saberes diferentes, isso porque, não conheço registro de um estudo científico que tenha questionado o tamanho do dia (palavra) com o dia (tempo).

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubens. Quando eu menino. Campinas: SP: Papirus, 2003.

FREIRE. Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. 1997.

[1]Coordenadora Geral da parceria PAS/FAMATH e Professora das Faculdades Integradas Maria Thereza e Centro Universitário Plínio Leite.
[2] Colaboradores e coordenadores setorial da parceria PAS/FAMATh: Carolina Moreira Mota, Amanda de Souza Pereira, Paula Graziela Bernardino da Silva, Françoise Silva Araújo Cordeiro, Vivian Miranda Lago, Ana Carolina da Silva Braga, Valcileia de Souza Cardoso, Beatriz Miranda Monteiro de Barros, Isadora Delfino da Silva, Tânia Maria Vianna Pache de Faria, Leonardo Avellar da Silva Souza, Edson Petrônio de Alcantara, Maria Elivania Azevedo, Marcelle Dobal da Silveira, Paulo Vinicius Costa Gilio, Ana Carolina Nascimento da Silva, Maria de Fátima Scaffo Barreto, Turíbio Tinoco da Silva, Helenice Pereira Sardenberg. , Maria Teresa Carmona do Nascimento, Michele da Silva Vidal Marques.

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