sexta-feira, 18 de novembro de 2005

A “boniteza” dos muitos brasis


Eis aí um texto que nos foi enviado pela Anésia, leitora e amiga do EntreTextos...

Profª Ms. Anésia Maria Costa Gilio[1]
Faculdades Integradas Maria Thereza[2]

Freire (1997), criou a expressão “boniteza” uma palavra que encerra encantamento e respeito por sua origem. Com um sotaque nordestino em um falar calmo, repleto de serenidade, paciência e tolerância, este educador brasileiro reconhecido internacionalmente, nunca apequenou a vida. Dizia que educar não é uma proposta de escola, mas sim, uma proposta de vida. Foi a admiração por este educador que me fez perceber a vida maior e buscar a responsabilidade que esta percepção representava e representa. Buscando, sustentação nos escritos deste educador, encontrei o que buscava: educar e educar-se é dar significado a cada ato do cotidiano. Como, então, dar significado ao fazer pedagógico universitário sem possibilitar ao graduando a percepção da boniteza dos muitos brasis? Isso porque, falar de Brasis é diferente de viver os muitos Brasis. Contar que no Piauí existe um alimento denominado “Chá de burro” ou “Mingau Maranhense”, provoca risos e questionamentos, mas possibilitar a este graduando conhecer a realidade vivida nesta região, um dos Brasis, e provar o sabor deste alimento, faz dos risos, sorrisos resultados do sabor do saber.
Este artigo é, portanto, um registro do aprendizado que o Programa Alfabetização Solidária possibilitou aos sujeitos acadêmicos na parceria PAS/FAMATh.

O objeto foi brincar com o conhecimento construído na relação de diferentes culturas. Entendendo que o termo brincar, não faz deste assunto uma ação menor, pelo contrário, segundo Alves (2003), brincar é difícil. Mais difícil, ainda, é lidar com a diferença de forma bem humorada, elevando o conhecimento do outro ao respeito que ele merece, vivendo com intensidade afetiva a percepção do inacabamento individual.
Esta intensidade afetiva é percebida principalmente na hospedagem. Na maioria dos municípios não existem pousadas ou hotéis. Somos acolhidos em residências de sujeitos sociais solidários. Dormimos nas camas das crianças, na cama de casal da dona da casa, a continuidade das visitas faz destes espaços, nossos. “Venha seu quarto já está arrumado”. “Coloque a mala no seu quarto”. “Professora, esta menina já pertence ao município”. “Quando vocês voltam? Já estamos com saudade”. “Alô! Aqui é de Jardim do Mulato, queremos saber se Vivian chegou bem?” “Alô, aqui é de Campo Redondo, a Carolina já chegou aqui e a mãe dela ligou dizendo que os exames médicos que ela fez semana passada acusaram hepatite, estamos cuidando dela e recomendaremos este mesmo cuidado para a companhia aérea, não se preocupe, ela está bem”. Ações como estas, merecem reflexão, são raras nos grandes centros urbanos. Valcileia Souza Cardoso, Coordenadora Setorial desta IES, define: “acolhida farta e solidária no sentido mais amplo: as pessoas abrem suas casas para pessoas que não conhecem e as acolhem com carinho, respeito e alguns até com orgulho. Deixamos nossas famílias para desenvolver um trabalho solidário, mas na realidade a solidariedade consolidada está no aconchego das pessoas dos municípios parceiros”.
Uma afetividade que emociona o ouvinte, “estive durante toda a noite pastoreando meu filho, ele está doente.” Ou “todos vão se banhar em uma espécie de cachoeira que é formada quando o açude sangra.” Estas expressões usadas no Rio Grande do Norte, relacionam filhos a ovelhas e o transbordamento das águas do açude, ao fluxo que sustenta o corpo. Resgatando o discurso do Sr. Genivaldo de Sergipe devo afirmar que Mães pastoreando filhos e açude sangrando são expressões da “Peiga”, muito boas! Quanta boniteza! No sudeste, mais precisamente nos grandes centros urbanos, existem rios e mar. Se o rio transborda é enchente, motivo de transtorno, casas invadidas, perdas materias, lamentação! Quando as águas do mar crescem é ressaca, festejada pelos surfistas que adentram as águas com suas pranchas e lamentada por muitos que residem na orla, pelos danos causados pela força com que as águas cobrem toda a faixa de areia. Bem perto de mim, está a Baía da Guanabara (RJ), águas poluídas em que circulam embarcações de diferentes portes. Nestas águas Iemanjá é homenageada na passagem de um ano para outro; competições esportivas e passeios turísticos são constantes, mas o respeito que o povo do nordeste tem pelo por suas águas, mares, rios e açude não se vê no sudeste. Neste exercício reflexivo sobre a relação não respeitosa com as águas do sudeste existe a intenção de “chamegar” estas pessoas, expressão usada em Sergipe que significa “sacudir” o sujeito, chamar sua atenção para o dito ou percebido. Já o povo do nordeste, merece um “cheiro”, um carinho, um abraço.
Este povo tem mesa farta, faz a feira toda semana. Nas feiras são comercializados produtos regionais, o produtor leva sua produção para vender e compra o que o outro produz. Estas feiras que acontecem uma vez na semana reúnem as, quase extintas, “feiras livres” do sudeste que vendem frutas, legumes e verduras, como muitos outros estabelecimentos comerciais, sacolões, açougues, peixarias, armarinhos, sapatarias, lojas de roupas e de brinquedos. Em Sergipe os dias de feira são como festas nas cidades. Os meios de transporte mais comuns são cavalos, “pau de arara” caminhões com muitos bancos de madeira espalhados pela carroceria, moto-taxi e “topiques” denominação para todos transportes coletivos menores que ônibus, independente da marca do veículo, os ônibus são poucos geralmente usados para transporte escolar.
Retornando à mesa farta, a visita que “come pouco”, provoca tristeza no anfitrião. Muitas são as exclamações: “Ela não gostou da comida!” “Ela come pouco!” “Prova!” Esta última proposta está sustentada na diferença alimentar existente nos muitos brasis, como: capote - galeto; Baião de dois é feijão com arroz, esta definição é simplista para a diferença existente, isso porque, o arroz é cozido no caldo do feijão, assim o prato servido é solto com arroz puro, só que misturado aos grãos de arroz estão os grãos de feijão; cuscus é feito com milho amarelo, substitui o pão ou a torrada do sudeste, é servido acompanhado de carne, ovos, manteiga etc. O Cuscus do sudeste é um doce branco com coco e muitos acrescentam leite condensado, não combina com os acompanhamentos do Cucus do nordeste; a canjica, também, do milho amarelo, quando quente é consumida com colher, como um mingau. Fria é cortada em quadradinhos e servida aos pedaços; a canjica do sudeste é feita com o milho branco e pode ser feita com coco ou amendoim, é um alimento comum no período da páscoa, no nordeste o alimento que se aproxima dela é o mugunzá que também é feito com o milho amarelo. Em Sergipe o cuscus é usado diariamente, os demais alimentos feitos com o milho amarelo são mais freqüentes no período do “São João” como são chamadas as festas juninas. Cabe destacar, ainda, que na noite de São João, são assados milhos, nas fogueiras montadas na frente das casas, e cada pessoa que passa conversa um pouco, come um pedaço de milho assado e segue o caminho para dançar o forró até o dia amanhecer.
A parceria das Faculdades Integradas Maria Thereza com o Programa Alfabetização Solidária, portanto, rejeita o rótulo de sujeitos envolvidos em ensinar jovens e adultos a ler e escrever. Esta parceria trabalha cidadania no processo de ensinar e aprender, movimento que dificulta definir em que momento se ensina e em que momento se aprende. Prova deste aprendizado começa na distribuição do material didático, quando no Rio Grande do Norte, hidrocor é caneta de álcool; lápis de cor é coleção; apontador é lapiseira. No Piauí tampa de caneta é bocal; papel pardo é papel madeira. Estas diferenças causam surpresas e aprendizado rápido, uns se apropriam dos termos usados pelos outros e as trocas não mais surpreendem porque o significado está definido.

A “boniteza” dos muitos brasis, entretanto, exigiu desta parceria FAMATh um trabalho de cidadania bem definido de como é preciso aprender. A partir dos discursos dos alfabetizadores e alfabetizandos iniciam-se os estudos nos municípios, com continuidade na IES. Foi estabelecida, então, uma parceria com as Secretarias de Saúde, a cada módulo os alfabetizadores são apresentados a esta secretaria e recebem um treinamento sobre doenças mais freqüentes na localidade e formas de prevenção. Este trabalho é estendido a todos os postos de saúde dos municípios. Estas ações surgiram em função da rejeição que as pessoas tem aos ensinamentos dos agentes de saúde: -“Já vem esse povo da saúde dizer que a gente tem que fazer tudo diferente do que sempre fez.” Foi percebido pelo grupo de trabalho desta IES que os alfabetizadores transformam-se em referências de alfabetizandos, são ouvidos e se fazem cúmplices nas alegrias, tristezas, facilidades e dificuldades. Assim, os valores foram invertidos, os alfabetizadores aprendem, contam para seus alunos o que aprenderam, mas não contam tudo. Apontam dúvidas, acionam a curiosidade e questionam a necessidade da visita dos representantes da saúde. Assim, a realidade está sendo transformada.
Na IES estuda-se diante das necessidades percebidas: verminose, muitos alfabetizandos não tem vaso sanitário em casa, grande problema de muitos municípios, qualidade da água, como limpar o filtro, lamentavelmente, também, poucos tem filtro; as representantes da IES foram com os alfabetizadores na estação de tratamento de água de um destes municípios para se certificarem da qualidade desta água; exame da água que alfabetizandos usam em comum acordo com uma fábrica está sendo providenciado; maiores informações sobre sindicato rural, questão que merece atenção em outro município; pesquisa sobre o tratamento dentário divulgado pelo governo federal; sugestões de atividades para serem desenvolvidas com as crianças do PETI, integração de alfabetizadores e alfabetizandos em projetos sociais desenvolvidos com crianças e jovens, quando toda a comunidade faz uso da biblioteca fornecida pelo PAS; a prefeitura de um município promoveu exame oftalmológico para todos os alfabetizando e forneceu óculos a todos os necessitados, a representação da IES tinha conseguido doação de armações de óculos para contribuir, mas não foram necessárias; estamos, também, testando uns óculos que são vendidos nas óticas, para faixa etária diferenciadas, portanto, comercialização autorizada, que só servem para ler e escrever, assim poderemos comprar para doar. Diante de todo este aprendizado, percebe-se que a boniteza está, também, no movimento de transformação da realidade que está posta, assim foi organizado por graduandos dos Cursos de Ciências Biológicas e Biologia Marinha desta IES, um evento denominado espaço de ações dialógicas, quando aconteceram palestras e mini-cursos. Cada participante pagou cinco reais de inscrição. O valor arrecadado foi destinado à compra de um contêiner para recolher alumínio, está sendo feita pesquisa de preços para efetuar a compra. O dinheiro arrecadado com a venda do alumínio será dividido em duas partes, uma para investimentos nos laboratórios dos cursos envolvidos e a outra para comprar óculos, filtros de barro (talha), vasos sanitários e tudo o mais que for necessário.

Sobre este último, questionei em sala de aula de um município, quantos deles não tinham vaso sanitário em casa e uma senhora respondeu: - “eu tenho, mas não uso”. Imediatamente perguntei porque e continuando ela disse: -“carrego água para cozinhar, tomar banho e lavar roupas, não vou carregar também para o vaso sanitário, prefiro não usar”. Continuei a conversa sustentada na leitura de vida de quem nasceu em uma casa com este conforto, dizendo que ela poderia usar a água que lava a roupa e ela com o olhar repleto de afetividade completou: “- Não é tão fácil assim, professora!” Pedi desculpas, resgatei a canção que diz “quem sabe da quentura da panela é a colher” e concordei com ela, porque realmente é muito fácil para quem tem água na torneira dizer o que fazer a quem não tem.

No meu lar refletindo sobre a deselegância de minha postura, lembrei que na minha infância muitas vezes minha família ficou sem água na torneira e carregávamos água inclusive para o vaso sanitário. A proposta que fiz, então, estava sustentada na minha história de vida. O que esqueci de fazer foi o exercício de avaliação que sempre proponho para os meus alunos, percebi que muitas vezes minhas ações não acompanham o discurso, parti de meus valores para criar critério de valor para o outro, quanto que avaliar é reeducar o olhar, é perceber o outro a partir dos valores dele. Na minha casa carregar água para o que entendíamos ser o básico da higiene coletiva era sustentado nos nossos valores, na maior parte do tempo tínhamos água encanada. Aquela senhora nunca teve este conforto, seus valores são outros e muito me ensinou, porque ela conseguiu viver o meu discurso, esvaziou-se de seus valores e me respondeu com afetividade, me ensinou e o título de professora era meu. Usar o vaso sanitário e dar descarga em seguida é uma ação que pertence ao meu cotidiano desde que nasci, nunca me preocupei com este mecanismo, era tão natural, mas quando voltei me surpreendi algumas vezes admirando o conforto desta ação, admirar para Freire é olhar de forma diferente, é olhar outra vez. É esta a forma de não apequenar a vida é a percepção do inacabamento, é fazer-se feliz com o erro, porque este está no caminho de busca para o acerto responsável, consciente e participativo.

Esta boniteza dos muitos brasis foi, portanto, um registro de aprendizados vividos de forma muito próxima sem relacionar os problemas denunciados aos municípios de origem, percebido como uma questão ética.
Retomando o movimento de brincar com palavras, convido o (a) leitor (a) a saborear um pão cheio - cachorro quente com carne moída ou um jacozinho com manteiga - pão francês, por que estas diferenças não são “guerra” ou “hagar”, não são a sério, são só brincadeiras. Sobre esta última resgato duas, jogar peteca é jogar bola de gude e o estilingue é baladeira, depois de muito brincar, proponho um banho de supapo, principalmente se a preferência for por banho quente, coisa rara no nordeste e muito comum no sudeste, assim o banho citado é banho de balde. Se ao entrar no banheiro para o banho encontrar uma perereca, peça que alguém ajude, tirando a gia de lá. Após o banho se vista para ficar “fechosa”, bem vestida, se a combinação de cores não ficar bem, no Rio Grande do Norte não diga que está brega como se afirma no sudeste, você poderá estar sendo muito indelicado (a) e levar um carão, ser chamado a atenção. Mas se esquecer este detalhe, diga que está de manchete, significa que está de fingimento.
Concluo este artigo reportando-me a Freire (1997), quando afirma que a boa escola é aquela que ensina a pensar, que não existe, portanto, uma proposta de escola, mas uma proposta de vida. O exercício de pensar, questionar, inquietar-se é o que existe de real para não se apequenar a vida. Assim cada sujeito que dedica sua vida ao saber científico precisa conhecer a boniteza dos muitos brasis para se perceber impregnado da sabedoria de um povo que pastoreia os filhos adoentados e que se banha na cachoeira formada quando o açude sangra e principalmente com aqueles que descobrem que “dia” é uma palavra muito pequena para um tempo que se faz muita coisa. Não existe, então, saber mais ou saber menos o que existe são saberes diferentes, isso porque, não conheço registro de um estudo científico que tenha questionado o tamanho do dia (palavra) com o dia (tempo).

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Rubens. Quando eu menino. Campinas: SP: Papirus, 2003.

FREIRE. Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. 1997.

[1]Coordenadora Geral da parceria PAS/FAMATH e Professora das Faculdades Integradas Maria Thereza e Centro Universitário Plínio Leite.
[2] Colaboradores e coordenadores setorial da parceria PAS/FAMATh: Carolina Moreira Mota, Amanda de Souza Pereira, Paula Graziela Bernardino da Silva, Françoise Silva Araújo Cordeiro, Vivian Miranda Lago, Ana Carolina da Silva Braga, Valcileia de Souza Cardoso, Beatriz Miranda Monteiro de Barros, Isadora Delfino da Silva, Tânia Maria Vianna Pache de Faria, Leonardo Avellar da Silva Souza, Edson Petrônio de Alcantara, Maria Elivania Azevedo, Marcelle Dobal da Silveira, Paulo Vinicius Costa Gilio, Ana Carolina Nascimento da Silva, Maria de Fátima Scaffo Barreto, Turíbio Tinoco da Silva, Helenice Pereira Sardenberg. , Maria Teresa Carmona do Nascimento, Michele da Silva Vidal Marques.

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Um pouco de matemática na educação infantil


Maria Inês Barreto Netto
“A escola enche o menino de matemática,
de geografia, de linguagem, sem, via de regra,
fazê-lo através da poesia da matemática,
da geografia, da linguagem.”
Carlos Drummond de Andrade

Quantos meninos e quantas meninas vieram hoje? Quem faltou? Então, quantos alunos não vieram hoje? De qual material vamos precisar para fazer a atividade? De quantos palitos o grupo vai precisar para jogar o bingo dos nomes? São perguntas que sempre fazemos e são problemas que as crianças resolvem todos os dias.

Outro bom problema para a criança resolver, desde o primeiro período, é quando ela tem que distribuir o material de trabalho – as folhas A4 e o desenho mimeografado, por exemplo – para os colegas de grupo. As estratégias vão do levar uma folha de cada vez até à correspondência um a um pela contagem das crianças e do material.
Ou, ainda, contar e registrar as coleções de figuras, de símbolos, de rótulos e de embalagens. As crianças, em pequenos grupos, discutem o modo de realizar a análise quantitativa das coleções. O registro das quantidades – a escrita – vai variar, portanto, segundos os critérios e as hipóteses de cada grupo para resolver os problemas. É a consolidação interna de uma estratégia que permitirá à criança ir reduzindo a quantidade de ações – operações mentais – que ela desenvolve para resolver o problema.

Quais as crianças que já fizeram o desenho mimeografado? Quais os desenhos que já foram trabalhados por toda a turma? E os que ainda serão feitos? Em cada mês, quantos foram os dias com sol, com nuvens ou nos quais choveu? São situações que podem ser resumidas em quadros de dupla entrada, nos quais a escrita e a leitura têm uma função e um modo específicos: palavras e numerais expressam um raciocínio e uma lógica diferentes de um texto em prosa, por exemplo.

O pequeno, o grande, o maior, o menor, em baixo, em cima, do lado, perto, longe... São relações que as crianças estabelecem entre objetos muito antes da pré-escola. E nela o horizonte infantil se alarga: dependendo do ponto de referência, a relação que se estabelece é outra. Assim, tudo pode e deve ser comparado, analisado, medido e registrado. O “eu sou mais grande”, que logo aparece na pré-escola, leva a professora a medir a altura dos alunos, às vezes, usando os dedos para indicar a diferença entre as crianças. A partir daí, então, podemos medir a mesa, o quadro, o chão da sala, a folha de papel... usando a mão da criança, a mão da professora, usando objetos grandes para medir coisas grandes, objetos pequenos para as pequenas... As crianças maiores vão registrando também os resultados das medições e contando para os outros grupos. Logo fica criada a necessidade do uso de um objeto único como instrumento dessa mensuração. Coletivamente, decidem o que usar para quantificar e comunicar o tamanho das coisas e dos objetos.

domingo, 31 de julho de 2005

Da “Festa do Folclore” para a cultura popular festejada

Cultura popular com o universo de Portinari
Maria Inês Barreto Netto
Adriana Santos da Mata
Elisabeth da Silva
Ivone de Aguiar Vivas
Leila Márcia Araújo Martins
Lilian Cristina de Azevedo Teixeira de Aguiar
Lúcia Cruz Fernandes
Sandra Regina Peçanha da Costa

Da “Festa do Folclore” para a cultura popular festejada

Na história da nossa Umei, o tema folclore era apresentado, de acordo com o calendário das efemérides, todo mês de agosto. As atividades propostas – por exemplo: declamar trovas, dizer travalínguas, fazer brincadeiras de roda, conhecer os personagens das lendas e as cantigas populares – ocorriam sem tratamento científico e/ou clareza teórico-metodológica. Neste contexto, nós compartilhávamos, sem reflexão, da concepção de folclore como uma produção exótica do povo, como se o povo não fosse capaz de produzir cultura. Ou seja, estávamos imersas no senso comum do trabalho da escola com a arte e a cultura.

A partir do ano 2000, a “Festa do Folclore” - culminância do trabalho com a efeméride - começou a ganhar novos significados. Passamos a trazer os adultos com suas crianças para conhecer um pouco mais da nossa cultura popular num dia de atividades na escola. Atividades e saberes populares diversificados pelas salas (em sistema de workshops, a que chamamos oficinas) – brinquedos e brincadeiras, máscaras e fantoches, cantigas de ninar e outras músicas, danças e lendas – e as famílias escolhiam o momento de participar, para tudo terminar com uma grande ciranda e um “boi”, para susto de umas crianças e encantamento de outras. Neste dia, pais, mães, avós, tios e tias puderam relembrar brincadeiras e histórias de suas infâncias e as crianças, além de estarem aprendendo, puderam compartilhar suas experiências com os parentes. A participação das famílias resultou numa proximidade maior entre a escola e a comunidade.

A tradicional “Festa do Folclore” vem evoluindo e se modificando, bem como o nosso fazer pedagógico, por meio das reuniões semanais de estudo e planejamento. Quer dizer, estamos vivendo um processo de construção da nossa consciência crítica – formação permanente, no dizer de Paulo Freire (1998) – em relação ao trabalho da escola com a arte e a cultura.

Essas relações de trabalho com a cultura, por sua vez, constituem um dos eixos do próprio processo de reformulação pedagógica da escola que vem ocorrendo desde a década de 1990. Assim, tanto a nossa formação profissional como o projeto pedagógico da escola vêm sendo refeitos continuamente e de modo coletivo.


E a cultura festejada

A natureza da articulação entre cultura e escola, pensamos, diz respeito às ações da escola para desencadear nas pessoas um processo de identificação histórica com o repertório humano nas dimensões acionárias das atitudes, dos comportamentos, dos valores, das idéias, dos conhecimentos, das diversas linguagens etc.

Tal articulação podemos ver presente no ensinamento de Gramsci – escola de cultura desinteressada – tendo em vista que “cultura é organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior, pela qual se consegue compreender seu próprio valor histórico, a função na vida, os próprios direitos e deveres” (Gramsci1 apud Nosella, 2004). Pela cultura nos constituímos humanos enquanto constituímos a cultura, como duas faces da mesma moeda.

Subjacente a essa articulação está o trabalho com a arte. Seu tratamento metodológico e didático, contudo, vem sendo investigado cada vez mais nas duas últimas décadas. Na educação infantil – campo de reflexão e pesquisa dessa articulação de ampliação e aprofundamento ainda mais recente – a natureza de seu substrato teórico vem recebendo importantes contribuições da pedagogia de projetos e das experiências das escolas italianas de Reggio Emilia (Moss, 2002; Pillotto e Mognol, 2004).

Pensamos, portanto, a arte como uma linguagem para conhecer, compreender e comunicar as coisas do mundo. Criação e conhecimento se entrelaçam na mesma raiz ativa. Assim, para pensar essa ação pedagógica o chamamento de Ana Mae Barbosa é contundente e inspirador: “precisamos levar a arte que hoje está circunscrita a um mundo socialmente limitado a se expandir, tornando-se patrimônio da maioria e elevando o nível de qualidade de vida da população” (1991, p. 6). E proporcionar meios para que as crianças vivam intensamente a linguagem artística e estética numa produção repleta de conhecimentos cultivada pelos educadores e com espaço para a manifestação criadora dos alunos inscreve-se no que Georges Snyders (1996) chamou de alegria na escola: o cultivo do conhecimento da cultura e de suas obras.

Aliada a essas questões há, ainda, o movimento em torno da difusão da idéia que o que o povo faz não é cultura, tampouco obra de arte; a elite dominante, sim, produz cultura e obras artísticas. Este pensamento difuso, veiculado até subliminarmente, é outro importante eixo a ser enfrentado no trabalho escolar de articular cultura, arte e educação.

Em resumo, estas são as questões que perpassam o atual momento do nosso saber-fazer pedagógico dessa articulação em educação infantil – o nosso processo.


Então, Portinari

"O universo de Portinari
se às vezes dói, sempre fulgura:
entrelaça, como num verso,
o que é humano ao que é pintura."
Carlos Drummond de Andrade



Com sensibilidade, cores e formas, Candido Torquato Portinari trouxe a cultura popular brasileira para as telas da cultura dominante. Músicos, reisado, bumba-meu-boi, bailados, brincadeiras de criança, retirantes e despejados da terra e das estrelas povoam seu universo de militância expressiva. Nele nos reconhecemos crianças brincando na gangorra, soltando pipas ou ouvindo a música da banda no coreto da praça. Nas cores da terra, são pincelados o cotidiano e a história dolorida e alegre de uma comunidade. Como disse o poeta, Portinari entrelaça natureza humana e pintura.


Então, estudamos a arte das nossas festas, das nossas brincadeiras infantis, das alegrias e tristezas cotidianas da vida de pessoas como nós, nossos alunos e suas famílias com o universo artístico de Candido Portinari.
O projeto foi desenvolvido em três momentos:

  1. Atividades formativas com as professoras a respeito do universo de Portinari;
  2. Professoras e alunos em ações educativas por meio das obras de Portinari;
  3. Ação com a comunidade.


As atividades formativas com as professoras tinham a intenção de fazê-las conhecer a história do artista, a história de sua família e de sua infância, enfim, de conhecer detalhes marcantes de toda a sua vida, bem como diversas de suas obras. Desse modo, as educadoras poderiam estabelecer relações entre a obra de Candido Portinari – na temática em questão – e a educação no universo de relações entre arte, cultura e cultura popular. Tais atividades ocorreram por meio de estudos nas reuniões de planejamento anteriores ao início do desenvolvimento do projeto e, na medida em que as situações surgiam, nas reuniões semanais, às quartas-feiras.
Na descrição e reflexão sobre o percurso do trabalho, faremos o relato de várias dessas ações educativas desenvolvidas com os alunos a partir do primeiro momento formativo com as professoras. Ao mesmo tempo, essas ações foram educativas também em relação às professoras.


A ação com a comunidade ocorreu por intermédio das atitudes dos alunos nas suas casas – que foram relatadas pelos pais e responsáveis em reuniões –, pelas Oficinas de Cultura Popular e pelo jornal EntreTextos. Tais oficinas foram realizadas num dia em que as crianças e suas famílias permaneceram várias horas na escola apreciando a exposição das imagens e dos textos que contavam a história do artista, as reproduções de suas telas e, também, a exposição das criações dos alunos. Além disso, as crianças e suas famílias escolheram e movimentaram-se pelas oficinas das brincadeiras: jogo das cinco marias; escravos-de-jó; das criações: pintura; máscara, pipa, composição com materiais diversos; de música e dança etc.


1 GRAMSCI, Antonio. Cronache torinesi. Sergio Caprioglio (org.). Turim: Einaudi, 1980, p. 100.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva; Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1991.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 9 ed. São Paulo: Olho d’Água, 1998. 127 p.

MOSS, Peter. Encontros e desencontros da educação infantil.

NOSELLA, Paolo. A linha vermelha do planeta infância: o socialismo e a educação da criança. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv245.htm. Em 21 de julho de 2001.

PILLOTTO, Silvia Sell Duarte e MOGNOL, Letícia Coneglian. Propostas para a arte na educação infantil. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.artenaescola.org.br/fr_artigos.html. Em 13 de julho de 2004.

sexta-feira, 29 de julho de 2005

Alfabetização: ouvindo os trabalhadores

Carla Andrea Lima da Silva
(parceira no EntreTextos)

MELO, Olinda Carrijo. Alfabetização e Trabalhadores: o contraponto do discurso oficial. Campinas-SP: Editora da UNICAMP; Goiânia-GO: Editora da UFG, 1997, 106 p.

No livro Alfabetização e Trabalhadores: o contraponto do discurso oficial, a autora elabora um estudo sobre a alfabetização popular no Brasil, partindo das histórias de vida e dos relatos de dois grupos de trabalhadores, sendo um grupo pertencente à zona rural de Goiás e o outro grupo, pertencente à área da construção civil da cidade de Goiânia, buscando realizar um contraponto entre as falas dos trabalhadores e o discurso apresentado oficialmente pelos variados segmentos da sociedade. O livro se divide em quatro partes, de modo que o leitor possa acompanhar de forma clara, a trajetória da elaboração do estudo.

Na primeira parte, denominada O Percurso, a autora apresenta a hipótese inicial que motivou o seu trabalho, além de descrever o caminho percorrido antes e durante a realização da pesquisa. Nesse momento, algumas de suas escolhas se tornam evidentes, quando opta por uma metodologia de pesquisa qualitativa, fazendo uso da narrativa como instrumento de construção coletiva do conhecimento, tomando a linguagem dos diversos sujeitos da pesquisa como o próprio objeto de suas análises e interpretações. Adota como referencial teórico para tanto, as idéias de Bakhtin, que apresenta a linguagem como construção e expressão das relações sociais e da luta de classes.

Excluídos porque somos culpados é o subtítulo da segunda parte, onde a autora expõe a apropriação que o discurso oficial, objetivando a manutenção do status quo, tem feito da fala dos trabalhadores, fala esta que, muitas vezes evidencia o sentimento de culpa que os mesmos carregam pela sua situação de excluídos. Nesse momento, a autora apresenta dezessete aspectos contidos na alfabetização, que emergem da fala dos trabalhadores e que revelam toda a ideologia que perpassa a concepção dominante sobre ato de alfabetizar. Esses aspectos nos mostram a alfabetização de forma descontextualizada, marginalizadora, controladora, reprodutora da desigualdade social e alienadora, já que não permite aos trabalhadores serem autores críticos do conhecimento.

Na terceira parte do livro, O que não é registrado, tem registro, são resgatados elementos da fala e da prática dos trabalhadores que, embora na obscuridade, anunciam algum tipo de resistência ao discurso dominante, rompendo com a “rede microfísica de poder” (p. 88), conceito esse, trabalhado por Foucault, provocando assim, mudanças estratégicas nas políticas públicas voltadas para a alfabetização de trabalhadores, principalmente nas difundidas pelas diversas campanhas realizadas pelos órgãos governamentais e internacionais. Tal resistência dos trabalhadores se torna visível por exemplo, quando o trabalhador, reconhecendo seus direitos de cidadão, aprende a língua e a cultura dominante transmitida na escola mas, não aceita que a sua cultura, o seu saber, sejam desvalorizados pela mesma, revoltando-se contra o descaso do governo em relação à construção de uma alfabetização significativa.

Na última parte do livro, De leitores e de escritores possíveis, a autora mostra que, somente no caminho da resistência que já têm desenvolvido, os trabalhadores poderão romper com uma alfabetização homogeneizadora e descontextualizada, propondo um outro tipo de alfabetização que os permita serem de fato, leitores e escritores críticos da realidade em que se inserem.

Fazendo uma análise da estrutura social, bem como das políticas públicas voltadas para a alfabetização popular, a autora lança mão das contribuições de diversos autores (Foucault, Marcuse, Perrot, Frigotto, entre outros.), o que nos permite compreender a alfabetização num contexto de capital/exploração e submissão/resistência. Para tanto, a autora faz uso das análises teóricas de tais autores que giram em torno de elementos como: exército de reserva, teoria do capital humano, relação saber e poder, trabalho abstrato etc. Assim é que somos levados, através do seu texto, a compreender a alfabetização como algo que pode estar a favor da manutenção da divisão social ou como algo que, se construído no diálogo coletivo, respeitando-se as múltiplas vozes dos sujeitos diversos, pode estar a favor da transformação social, levando a formação de sujeitos críticos e conscientes, constituindo-se, inclusive, em instrumento de luta.

Para anunciar essa alfabetização contextualizada, a autora dialoga com diversos estudiosos da linguagem (Bakhtin, Benjamin, Gnerre, Karl Kraus, Moysés) que a concebem numa perspectiva de linguagem enquanto interação verbal e social, construída coletivamente.

Na gênese do seu trabalho de pesquisa, a autora enuncia a existência não de uma história da alfabetização de trabalhadores mas sim, de duas histórias que permeiam essa prática, a oficial e a real, sendo a última, emergente do relato dos próprios trabalhadores. Entretanto, ao se aproximar da narrativa dos trabalhadores percebe que, as histórias se cruzam, já que os mesmos assimilam o discurso oficial no qual o ideário dominante sempre prevaleceu, difundindo-se nas práticas alfabetizadoras. Ou seja, o que se tem, ao entrecruzar ambas as falas (a oficial e a dos trabalhadores) é uma só história marcada por submissão/resistência, aceitação/embate. O livro contribui para que compreendamos a ideologia que perpassa o discurso dominante e as práticas daí decorrentes, no que tange às políticas de alfabetização de trabalhadores.

Por todos os elementos aqui apontados, defendemos essa como uma valiosa leitura para o campo da educação, uma vez que apresenta uma discussão crítica acerca da estrutura social brasileira, tomando como objeto dessa discussão a alfabetização da classe trabalhadora. Dessa forma, a autora nos leva ao entendimento de tais questões, tecendo uma outra história da alfabetização popular, configurando, em seu texto, uma espécie de rede de saberes, onde todos (trabalhadores, teóricos e a fala oficial) são colocados num mesmo patamar, para uma promoção efetiva do diálogo entre esses diversos sujeitos.

segunda-feira, 18 de julho de 2005

Artista criança

Lilian Cristina Azevedo Teixeira de Aguiar
(parceira no EntreTextos)

Nas primeiras apresentações sobre a vida de Portinari, por meio do livro Crianças Famosas, os alunos ficaram sabendo que muito cedo ele começou a se interessar pela pintura e com a idade delas começou a pintar. Isso gerou grande euforia já que descobriram que não era preciso crescer para começarem a pintar.

Num segundo momento, mostramos projeções de transparências com fotos de Portinari em família, pintando e com outras personalidades. Numa das turmas de crianças de cinco anos, uma dessas fotografias acabou por orientar o trabalho para outro caminho. Era uma foto em que Portinari estava acompanhado do escritor Mário de Andrade próximos a um carro antigo. O que despertou a atenção não foram as personalidades presentes, e sim a pequena parte do carro que aparecia.
Diante de tal interesse, o assunto da aula passou a ser, então, carros antigos. Depois de muita conversa, combinamos de pesquisar em casa mais informações sobre o assunto. Na aula seguinte, no entanto, chegou pouquíssimo material. Então, apanhamos uma caixa com revistas velhas, algumas até rasgadas, para procurarmos. As crianças passaram a recortar todos os carros que encontravam e colar em uma cartolina. Foi quando alguém gritou:

_ “Tia, olha o Portinari!”

Todos fomos ver o que era. Para a nossa surpresa, era uma matéria de um exemplar da revista Capricho, bem antiga, sobre moda feminina. O “Portinari” a que os alunos se referiam, era uma pequena reprodução da tela Café – que já havíamos estudado – com uma modelo posando em um cafezal.

Outro ponto interessante é que, apesar de já termos trabalhado essa tela, alguns alunos ainda não haviam entendido que o café era uma planta. Conversamos somente sobre esta página. Ao fim da aula, a professora levou a revista para ler em casa e encontrou, entre outras telas, a do Menino Sentado, que trazia o senhor que servira de modelo, quando criança, para a série Meninos de Brodósqui. A descoberta foi levada para a reunião pedagógica.

Alguns dias depois, o pai de uma professora conseguiu um galho com sementes já maduras de café e as crianças puderam ver, tocar e sentir o cheiro do café.

A matéria da revista foi incorporada ao nosso material de trabalho para que servisse também de fonte de informação.

quinta-feira, 7 de julho de 2005

Aprendendo a dizer não! ao não

por Renata dos Santos Melro
(parceira no EntreTextos)

Nós seres humanos, devido a razões históricas talvez, tendemos a dar mais ênfase aos erros que aos acertos dos outros. Assim, se alguém faz alguma coisa certa, agimos normalmente, como se este não tivesse feito mais que a obrigação, entretanto, quando esta mesma pessoa comete um erro... pronto! É o fim do mundo! Seguindo este mesmo pensamento, procurei observar a lógica das escolas nas quais trabalho.
Trabalhei nesses 7 anos de magistério com diversas séries do Ensino Fundamental (de 1ª a 4ª série) e, destes, 3 anos foram dedicados a Educação Infantil. Lembro-me que eu ficava louca quando um aluno não conseguia reproduzir o nome ou quando este não conseguia identificar as vogais apresentadas, por exemplo. É claro que eu tinha razão para tanto.
A escola que lecionei e que ainda leciono (não mais com Educação Infantil) tem como via principal a apreensão dos conteúdos e, quando as crianças não os assimilavam, era simplesmente porque nada sabiam. Nas reuniões de planejamento, a coordenadora sempre perguntava como estavam meus alunos. Vocês pensam que eu falava dos alunos que iam bem? Claro que não! Eu dizia logo: Não sei mais o que faço com a Paola, com a Luciana, com o Weslly... eles não conseguem reproduzir o nome, não identificam as vogais, não sabem o alfabeto...
Reparem que, na minha fala, o advérbio de negação aparece mais do qualquer outra coisa. Apesar disso, eu até então não tinha parado para pensar no meu fazer pedagógico.
Em 2004, acabei saindo da Educação Infantil por causa de uma reformulação nas turmas. Neste mesmo ano passei no concurso para professor municipal de Niterói e caí meio que de pára-quedas na escola em que me encontro hoje (UMEI Rosalina de Araújo Costa). Costumo dizer que eu não poderia ter caído em lugar melhor, pois sei que poderia ter caído sem pára-quedas em outra escola.
Ao começar o trabalho com as crianças percebi que estava não só num ambiente diferente, mas com um fazer pedagógico diferente. Nesta UMEI o que vale é o conhecimento construído pela criança com a mediação do professor e não o conhecimento pronto trazido por este. Não pensem que não encontrei alunos que não sabiam fazer o nome e muitas outras coisas. Ao contrário. Esses alunos existem e sempre vão existir, a diferença é a maneira como vemos esse não saber.
Gostaria de citar o exemplo de um aluno, o Waldemir. Essa criança não falava absolutamente nada comigo e nem com os colegas de classe. Quando eu perguntava algo a ele as crianças respondiam logo: tia, ele não fala não! Enquanto as crianças desenhavam cenas completas e escreviam seus nomes no 3º período, o Waldemir fazia espirais. Certamente, se eu estivesse trabalhando na Educação Infantil da primeira escola, ele entraria para a lista dos que nada sabem, seria assim mais um para me enlouquecer. Entretanto, o processo de desenvolvimento do Waldemir foi tão bonito que despertou em mim um amor muito grande por ele. Eu não o forçava a nada, simplesmente o estimulava e valorizava cada palavra, cada gesto, cada traço. Respeitava o seu tempo. Hoje ele desenha cenas, reproduz o seu nome, mantém diálogos comigo e com alguns colegas (embora tenha problemas na fala) e até arrisca explicar o que fez em seu desenho.
Sei que conteúdos são importantes, mas o que diferencia é a maneira com que estes são passados ou construídos. Na situação atual em que vivemos é imprescindível que tenhamos os alunos perto de nós e que nossa prática seja a de incluir e não a de excluir.Em virtude de tudo isso que escrevi, penso ser necessário revermos nossos conceitos, aprendermos a ver mais o sim do que o não. Em suma, é preciso enxergarmos que toda criança é capaz, toda criança pode... cada uma no seu tempo.

segunda-feira, 4 de julho de 2005

Arquitetando paisagens


Atitudes e procedimentos para conhecer na pré-escola
Lilian Cristina A. T. de Aguiar, Espedita Alexandra L. Mesquita, Ivone de A. Vivas, Elisabeth da Silva, Lúcia C. Fernandes, Jaqueline da C. Cardoso e Maria Inês B. Netto

Entendendo que a construção do conhecimento pelo aluno ocorre a partir de sua ação sobre o objeto de estudo (Vygotsky, 2000), desenvolvemos atividades que propiciaram novas leituras de lugares já familiares aos alunos de cinco-seis anos da educação infantil – o quarteirão onde fica a escola, a escola e a casa deles.

Um princípio de nossa postura pedagógica expressa-se pelo trabalho com as atitudes e os procedimentos necessários às ações de estudo do objeto, tanto da professora como dos alunos. Tais ações foram orientadas muitas vezes pelas crianças e em outras havia a marca da função social da professora. Outro princípio consiste no que Paulo Freire chamou de pedagogia da pergunta (Freire e Faundez, 1985): atenção à fala e/ou pergunta da criança e transformá-la num problema a ser trabalhado e estudado, desencadeando ações na busca da resposta.

Professoras e crianças deram uma volta no quarteirão da escola a fim de observá-lo e registrar na prancheta suas observações – pesquisa de campo. As crianças sentavam-se no meio-fio para escrever e desenhar; copiaram o que viram escrito, mas viram também uma escrita que não podiam ler e copiar (pichação).

Um aluno perguntou ao guarda de trânsito o que estava escrito em sua camisa e pediu-lhe que ficasse parado enquanto copiava a palavra.

Foi interessante ver alunos tão pequenos em atitude de estudo. Uma senhora perguntou a um deles o que estavam fazendo fora da escola: “Estamos fazendo pesquisa!”.

Na roda de conversa, a ação de cada criança foi a de fazer a leitura de suas anotações na prancheta e ditaram um relatório para a professora e, posteriormente, um texto coletivo foi elaborado.

Propusemos a elaboração da planta da sala, a sua representação em desenho visto de cima, “como se estivesse num balão”, na expressão de uma criança. A observação de um menino expressa o seu processo de significação do novo conhecimento ao enunciar que “planta é a construção vista somente o chão”.

O que nos levou a discutir nas turmas a respeito do planejamento no processo de organização e ocupação do espaço pelas pessoas. Assim, refletimos sobre o trabalho de arquiteto, urbanista e paisagista, por meio das histórias de vida e da obra de Niemeyer, Lúcio Costa e Burle Marx, com material da internet e de jornais.

Então, um quarteirão fictício e o da escola, o condomínio em construção, a casinha da boneca foram lugares escolhidos pelas turmas para representar bi e tridimensionalmente. Em planejando a maquete, levamos os alunos a analisar a forma que a planta deveria ter e seus outros elementos, buscando as relações entre o que estavam desenhando e o espaço planejado.

Com a maquete pronta e a respectiva planta as crianças fizeram a leitura da maquete, estabelecendo relações entre elas. São ilustrações dessa leitura:
A maquete não ficou toda igual porque a gente não olhou na planta.”
A gente não olhou a planta, vamos fazer tudo de novo com paciência porque não somos arquitetos, ainda temos que estudar muitíssimo.”

Bibliografia
FREIRE, P. e FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
VYGOTSKY, L. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Artigo publicado no jornal da Editora DP&A, baseado no projeto de trabalho “Arquitetando paisagens”, realizado no 1o. semestre de 2003 na pré-escola onde as autoras trabalham.

Diálogo e Educação


Em Paulo Freire


por Adriana Santos da Mata
(parceira no EntreTextos)

“Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
(Paulo Freire)


Um dos eixos fundamentais do pensamento de Paulo Freire no que concerne à educação para a liberdade e a transformação da sociedade é o diálogo. No diálogo, há um encontro dos homens e uma mediação do mundo, por meio da qual, os homens podem “pronunciá-lo”. É pelo diálogo que os homens transformam o mundo e ganham significação enquanto homens.
O autor contrapõe à concepção da prática “bancária” da educação, que é antidialógica por essência, na qual o educador “deposita” no educando o conteúdo programático, elaborado por ele mesmo ou por outros, a prática problematizadora, dialógica, cujo conteúdo jamais é “depositado”, e sim organizado e constituído na visão de mundo dos educandos, onde se encontram seus temas geradores. Enquanto a ação antidialógica se caracteriza pela conquista, divisão, manipulação, invasão cultural, e a elite dominadora promove uma mitificação da realidade para manter a dominação; na teoria dialógica da ação, cujos aspectos são a co-laboração, união, organização e síntese cultural, os sujeitos dialógicos se voltam sobre a realidade mediatizadora que os desafia a fim de desvelar o mundo, desmitificá-lo, e assim transformá-lo. (Freire, 1988) O objetivo da ação cultural dialógica não supõe o desaparecimento da dialeticidade permanência-mudança, visto que implicaria o desaparecimento da estrutura social e dos próprios homens, mas a superação das contradições antagônicas de que resulte a libertação dos homens. (idem)
A ação dialógica só se efetiva a partir de quatro atitudes importantíssimas por parte do educador ou da educadora: saber escutar o que os educandos têm a dizer, o que sentem, o que desejam, o que esperam, o que pensam; respeitar as diferenças culturais, geográficas, econômicas, sociais, religiosas; partir da leitura de mundo dos educandos, dos conhecimentos que trazem, do “saber de experiência feito”, e, depois de tudo isso, escolher, com os educandos, conteúdos e métodos de ensino que contemplem as suas necessidades e favoreçam uma educação crítica e libertadora.Saber escutar implica, para Paulo Freire, a disponibilidade permanente do “sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, às diferenças do outro”. Ele diz que, escutando bem, o sujeito pode se preparar melhor para se situar do ponto de vista das idéias. Além disso, é escutando que o (a) educador (a) aprende a falar com os educandos. “O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.” (Freire, 2002, p. 127-8; 135)
Não se trata, portanto, de uma imposição de cima para baixo de “verdades” que os educadores, pretensamente, acreditem que podem transmitir aos demais. Os (as) professores (as) devem investigar o pensar do povo com o povo, sujeito de seu pensar. E constatando que o “se seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar, na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir idéias, mas no de produzi-las e de transformá-las na ação e na comunicação”. (Freire, 1988, p. 101)
O autor assinala que uma das virtudes essenciais de quem sabe escutar é aceitar e respeitar as diferenças. Ele diz:“Se discrimino o menino ou a menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não me importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é outro a merecer respeito, é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível”. (Freire, 2002, p. 136)

(continua)

Diálogo e Educação


por Adriana Santos da Mata
(parceira no EntreTextos)
(continuação)

Para a educação dialógica acontecer de fato, deve-se ter respeito ao saber popular e, em decorrência disso, ao contexto cultural local. Este é o ponto de partida para o conhecimento que os educandos vão criando do mundo. A localidade “é a primeira e inevitável face do mundo mesmo”. Não se pode desprezar o que alunos, sejam crianças ou jovens e adultos, “trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros.” (Freire, 1993, p. 85-6)

Daí decorre que a ação educativa dialógica deve se dar a partir da leitura de mundo dos educandos. O diálogo da educação como prática de liberdade é inaugurado no momento em que se realiza a investigação do universo temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores. A partir da situação presente, existencial, concreta, que reflete o conjunto de aspirações do povo, é que se deve organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”. (Freire, 1988)

O respeito à leitura de mundo do educando revela que o (a) educador (a), com o aluno e não sobre ele, busca a superação de uma maneira mais ingênua por outra mais crítica de compreender o mundo. “No fundo, o educador que respeita a leitura do mundo do educando, reconhece a historicidade do saber, o caráter histórico da curiosidade, desta forma, recusando a arrogância cientificista, assume a humildade crítica, própria da posição verdadeiramente científica”. (Freire, 2002, p. 138-9)
Deste modo, para que a dialogicidade comece, o educador-educando tem que se perguntar que conteúdos vai trabalhar, em se torno do que vai dialogar com os educandos-educadores na situação pedagógica. De acordo com o autor:
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositados nos educandos –, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada”. (Freire, 1988, p. 83-4)

Nesta perspectiva, a formação dos professores e das professoras tem que considerar este saber necessário, e que tem importância inegável sobre nós, do contorno ecológico, social e econômico em que vivemos. Juntar o saber teórico ao saber prático da realidade concreta em que os (as) educadores (as) trabalham. As condições materiais em que e sob que vivem os educandos lhes condicionam a compreensão do próprio mundo, sua capacidade de aprender, de responder aos desafios. Cabe aos (às) professores (as) abrirem-se à realidade desses alunos com quem partilham sua atividade pedagógica a fim de que se tornem, no mínimo, menos estranhos e distantes dela. (Freire, 2002)

É preciso ter claro que “o (a) professor (a) só ensina, em termos verdadeiros, na medida em que conhece o conteúdo que ensina, quer dizer, na medida em que se apropria dele, em que o apreende ... Ensinar é assim a forma que toma o ato de conhecimento que o (a) professor (a) necessariamente faz na busca de saber o que ensina para provocar nos alunos seu ato de conhecimento também. Por isso, ensinar é um ato criador, um ato crítico e não mecânico. A curiosidade do (a) professor (a) e dos alunos, em ação, se encontra na base do ensinar-aprender”. (Freire, 1993, p. 81)
A ação educativa dialógica se dá na relação com e entre os homens, através de sua ação sobre o mundo, na criação do domínio da cultura e da história. Os homens são seres da praxis. “Praxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação.” (Freire, 1988, p. 92) Somente os sujeitos que se abrem ao mundo e aos outros são capazes de estabelecer uma relação dialógica que se confirma como inquietude e curiosidade, um processo contínuo e inacabado, em permanente movimento na História. (Freire, 2002)

BIBLIOGRAFIA
Centro Paulo Freire [on-line]. Disponível na Internet via www. URL http://www.paulofreire.org.br Em 26/05/05.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 18 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 . _____________. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993 .
_____________ . Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 24 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. (Coleção Leitura).