sexta-feira, 29 de julho de 2005

Alfabetização: ouvindo os trabalhadores

Carla Andrea Lima da Silva
(parceira no EntreTextos)

MELO, Olinda Carrijo. Alfabetização e Trabalhadores: o contraponto do discurso oficial. Campinas-SP: Editora da UNICAMP; Goiânia-GO: Editora da UFG, 1997, 106 p.

No livro Alfabetização e Trabalhadores: o contraponto do discurso oficial, a autora elabora um estudo sobre a alfabetização popular no Brasil, partindo das histórias de vida e dos relatos de dois grupos de trabalhadores, sendo um grupo pertencente à zona rural de Goiás e o outro grupo, pertencente à área da construção civil da cidade de Goiânia, buscando realizar um contraponto entre as falas dos trabalhadores e o discurso apresentado oficialmente pelos variados segmentos da sociedade. O livro se divide em quatro partes, de modo que o leitor possa acompanhar de forma clara, a trajetória da elaboração do estudo.

Na primeira parte, denominada O Percurso, a autora apresenta a hipótese inicial que motivou o seu trabalho, além de descrever o caminho percorrido antes e durante a realização da pesquisa. Nesse momento, algumas de suas escolhas se tornam evidentes, quando opta por uma metodologia de pesquisa qualitativa, fazendo uso da narrativa como instrumento de construção coletiva do conhecimento, tomando a linguagem dos diversos sujeitos da pesquisa como o próprio objeto de suas análises e interpretações. Adota como referencial teórico para tanto, as idéias de Bakhtin, que apresenta a linguagem como construção e expressão das relações sociais e da luta de classes.

Excluídos porque somos culpados é o subtítulo da segunda parte, onde a autora expõe a apropriação que o discurso oficial, objetivando a manutenção do status quo, tem feito da fala dos trabalhadores, fala esta que, muitas vezes evidencia o sentimento de culpa que os mesmos carregam pela sua situação de excluídos. Nesse momento, a autora apresenta dezessete aspectos contidos na alfabetização, que emergem da fala dos trabalhadores e que revelam toda a ideologia que perpassa a concepção dominante sobre ato de alfabetizar. Esses aspectos nos mostram a alfabetização de forma descontextualizada, marginalizadora, controladora, reprodutora da desigualdade social e alienadora, já que não permite aos trabalhadores serem autores críticos do conhecimento.

Na terceira parte do livro, O que não é registrado, tem registro, são resgatados elementos da fala e da prática dos trabalhadores que, embora na obscuridade, anunciam algum tipo de resistência ao discurso dominante, rompendo com a “rede microfísica de poder” (p. 88), conceito esse, trabalhado por Foucault, provocando assim, mudanças estratégicas nas políticas públicas voltadas para a alfabetização de trabalhadores, principalmente nas difundidas pelas diversas campanhas realizadas pelos órgãos governamentais e internacionais. Tal resistência dos trabalhadores se torna visível por exemplo, quando o trabalhador, reconhecendo seus direitos de cidadão, aprende a língua e a cultura dominante transmitida na escola mas, não aceita que a sua cultura, o seu saber, sejam desvalorizados pela mesma, revoltando-se contra o descaso do governo em relação à construção de uma alfabetização significativa.

Na última parte do livro, De leitores e de escritores possíveis, a autora mostra que, somente no caminho da resistência que já têm desenvolvido, os trabalhadores poderão romper com uma alfabetização homogeneizadora e descontextualizada, propondo um outro tipo de alfabetização que os permita serem de fato, leitores e escritores críticos da realidade em que se inserem.

Fazendo uma análise da estrutura social, bem como das políticas públicas voltadas para a alfabetização popular, a autora lança mão das contribuições de diversos autores (Foucault, Marcuse, Perrot, Frigotto, entre outros.), o que nos permite compreender a alfabetização num contexto de capital/exploração e submissão/resistência. Para tanto, a autora faz uso das análises teóricas de tais autores que giram em torno de elementos como: exército de reserva, teoria do capital humano, relação saber e poder, trabalho abstrato etc. Assim é que somos levados, através do seu texto, a compreender a alfabetização como algo que pode estar a favor da manutenção da divisão social ou como algo que, se construído no diálogo coletivo, respeitando-se as múltiplas vozes dos sujeitos diversos, pode estar a favor da transformação social, levando a formação de sujeitos críticos e conscientes, constituindo-se, inclusive, em instrumento de luta.

Para anunciar essa alfabetização contextualizada, a autora dialoga com diversos estudiosos da linguagem (Bakhtin, Benjamin, Gnerre, Karl Kraus, Moysés) que a concebem numa perspectiva de linguagem enquanto interação verbal e social, construída coletivamente.

Na gênese do seu trabalho de pesquisa, a autora enuncia a existência não de uma história da alfabetização de trabalhadores mas sim, de duas histórias que permeiam essa prática, a oficial e a real, sendo a última, emergente do relato dos próprios trabalhadores. Entretanto, ao se aproximar da narrativa dos trabalhadores percebe que, as histórias se cruzam, já que os mesmos assimilam o discurso oficial no qual o ideário dominante sempre prevaleceu, difundindo-se nas práticas alfabetizadoras. Ou seja, o que se tem, ao entrecruzar ambas as falas (a oficial e a dos trabalhadores) é uma só história marcada por submissão/resistência, aceitação/embate. O livro contribui para que compreendamos a ideologia que perpassa o discurso dominante e as práticas daí decorrentes, no que tange às políticas de alfabetização de trabalhadores.

Por todos os elementos aqui apontados, defendemos essa como uma valiosa leitura para o campo da educação, uma vez que apresenta uma discussão crítica acerca da estrutura social brasileira, tomando como objeto dessa discussão a alfabetização da classe trabalhadora. Dessa forma, a autora nos leva ao entendimento de tais questões, tecendo uma outra história da alfabetização popular, configurando, em seu texto, uma espécie de rede de saberes, onde todos (trabalhadores, teóricos e a fala oficial) são colocados num mesmo patamar, para uma promoção efetiva do diálogo entre esses diversos sujeitos.

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