domingo, 31 de julho de 2005

Da “Festa do Folclore” para a cultura popular festejada

Cultura popular com o universo de Portinari
Maria Inês Barreto Netto
Adriana Santos da Mata
Elisabeth da Silva
Ivone de Aguiar Vivas
Leila Márcia Araújo Martins
Lilian Cristina de Azevedo Teixeira de Aguiar
Lúcia Cruz Fernandes
Sandra Regina Peçanha da Costa

Da “Festa do Folclore” para a cultura popular festejada

Na história da nossa Umei, o tema folclore era apresentado, de acordo com o calendário das efemérides, todo mês de agosto. As atividades propostas – por exemplo: declamar trovas, dizer travalínguas, fazer brincadeiras de roda, conhecer os personagens das lendas e as cantigas populares – ocorriam sem tratamento científico e/ou clareza teórico-metodológica. Neste contexto, nós compartilhávamos, sem reflexão, da concepção de folclore como uma produção exótica do povo, como se o povo não fosse capaz de produzir cultura. Ou seja, estávamos imersas no senso comum do trabalho da escola com a arte e a cultura.

A partir do ano 2000, a “Festa do Folclore” - culminância do trabalho com a efeméride - começou a ganhar novos significados. Passamos a trazer os adultos com suas crianças para conhecer um pouco mais da nossa cultura popular num dia de atividades na escola. Atividades e saberes populares diversificados pelas salas (em sistema de workshops, a que chamamos oficinas) – brinquedos e brincadeiras, máscaras e fantoches, cantigas de ninar e outras músicas, danças e lendas – e as famílias escolhiam o momento de participar, para tudo terminar com uma grande ciranda e um “boi”, para susto de umas crianças e encantamento de outras. Neste dia, pais, mães, avós, tios e tias puderam relembrar brincadeiras e histórias de suas infâncias e as crianças, além de estarem aprendendo, puderam compartilhar suas experiências com os parentes. A participação das famílias resultou numa proximidade maior entre a escola e a comunidade.

A tradicional “Festa do Folclore” vem evoluindo e se modificando, bem como o nosso fazer pedagógico, por meio das reuniões semanais de estudo e planejamento. Quer dizer, estamos vivendo um processo de construção da nossa consciência crítica – formação permanente, no dizer de Paulo Freire (1998) – em relação ao trabalho da escola com a arte e a cultura.

Essas relações de trabalho com a cultura, por sua vez, constituem um dos eixos do próprio processo de reformulação pedagógica da escola que vem ocorrendo desde a década de 1990. Assim, tanto a nossa formação profissional como o projeto pedagógico da escola vêm sendo refeitos continuamente e de modo coletivo.


E a cultura festejada

A natureza da articulação entre cultura e escola, pensamos, diz respeito às ações da escola para desencadear nas pessoas um processo de identificação histórica com o repertório humano nas dimensões acionárias das atitudes, dos comportamentos, dos valores, das idéias, dos conhecimentos, das diversas linguagens etc.

Tal articulação podemos ver presente no ensinamento de Gramsci – escola de cultura desinteressada – tendo em vista que “cultura é organização, disciplina do próprio eu interior, é tomada de posse da própria personalidade, é conquista de consciência superior, pela qual se consegue compreender seu próprio valor histórico, a função na vida, os próprios direitos e deveres” (Gramsci1 apud Nosella, 2004). Pela cultura nos constituímos humanos enquanto constituímos a cultura, como duas faces da mesma moeda.

Subjacente a essa articulação está o trabalho com a arte. Seu tratamento metodológico e didático, contudo, vem sendo investigado cada vez mais nas duas últimas décadas. Na educação infantil – campo de reflexão e pesquisa dessa articulação de ampliação e aprofundamento ainda mais recente – a natureza de seu substrato teórico vem recebendo importantes contribuições da pedagogia de projetos e das experiências das escolas italianas de Reggio Emilia (Moss, 2002; Pillotto e Mognol, 2004).

Pensamos, portanto, a arte como uma linguagem para conhecer, compreender e comunicar as coisas do mundo. Criação e conhecimento se entrelaçam na mesma raiz ativa. Assim, para pensar essa ação pedagógica o chamamento de Ana Mae Barbosa é contundente e inspirador: “precisamos levar a arte que hoje está circunscrita a um mundo socialmente limitado a se expandir, tornando-se patrimônio da maioria e elevando o nível de qualidade de vida da população” (1991, p. 6). E proporcionar meios para que as crianças vivam intensamente a linguagem artística e estética numa produção repleta de conhecimentos cultivada pelos educadores e com espaço para a manifestação criadora dos alunos inscreve-se no que Georges Snyders (1996) chamou de alegria na escola: o cultivo do conhecimento da cultura e de suas obras.

Aliada a essas questões há, ainda, o movimento em torno da difusão da idéia que o que o povo faz não é cultura, tampouco obra de arte; a elite dominante, sim, produz cultura e obras artísticas. Este pensamento difuso, veiculado até subliminarmente, é outro importante eixo a ser enfrentado no trabalho escolar de articular cultura, arte e educação.

Em resumo, estas são as questões que perpassam o atual momento do nosso saber-fazer pedagógico dessa articulação em educação infantil – o nosso processo.


Então, Portinari

"O universo de Portinari
se às vezes dói, sempre fulgura:
entrelaça, como num verso,
o que é humano ao que é pintura."
Carlos Drummond de Andrade



Com sensibilidade, cores e formas, Candido Torquato Portinari trouxe a cultura popular brasileira para as telas da cultura dominante. Músicos, reisado, bumba-meu-boi, bailados, brincadeiras de criança, retirantes e despejados da terra e das estrelas povoam seu universo de militância expressiva. Nele nos reconhecemos crianças brincando na gangorra, soltando pipas ou ouvindo a música da banda no coreto da praça. Nas cores da terra, são pincelados o cotidiano e a história dolorida e alegre de uma comunidade. Como disse o poeta, Portinari entrelaça natureza humana e pintura.


Então, estudamos a arte das nossas festas, das nossas brincadeiras infantis, das alegrias e tristezas cotidianas da vida de pessoas como nós, nossos alunos e suas famílias com o universo artístico de Candido Portinari.
O projeto foi desenvolvido em três momentos:

  1. Atividades formativas com as professoras a respeito do universo de Portinari;
  2. Professoras e alunos em ações educativas por meio das obras de Portinari;
  3. Ação com a comunidade.


As atividades formativas com as professoras tinham a intenção de fazê-las conhecer a história do artista, a história de sua família e de sua infância, enfim, de conhecer detalhes marcantes de toda a sua vida, bem como diversas de suas obras. Desse modo, as educadoras poderiam estabelecer relações entre a obra de Candido Portinari – na temática em questão – e a educação no universo de relações entre arte, cultura e cultura popular. Tais atividades ocorreram por meio de estudos nas reuniões de planejamento anteriores ao início do desenvolvimento do projeto e, na medida em que as situações surgiam, nas reuniões semanais, às quartas-feiras.
Na descrição e reflexão sobre o percurso do trabalho, faremos o relato de várias dessas ações educativas desenvolvidas com os alunos a partir do primeiro momento formativo com as professoras. Ao mesmo tempo, essas ações foram educativas também em relação às professoras.


A ação com a comunidade ocorreu por intermédio das atitudes dos alunos nas suas casas – que foram relatadas pelos pais e responsáveis em reuniões –, pelas Oficinas de Cultura Popular e pelo jornal EntreTextos. Tais oficinas foram realizadas num dia em que as crianças e suas famílias permaneceram várias horas na escola apreciando a exposição das imagens e dos textos que contavam a história do artista, as reproduções de suas telas e, também, a exposição das criações dos alunos. Além disso, as crianças e suas famílias escolheram e movimentaram-se pelas oficinas das brincadeiras: jogo das cinco marias; escravos-de-jó; das criações: pintura; máscara, pipa, composição com materiais diversos; de música e dança etc.


1 GRAMSCI, Antonio. Cronache torinesi. Sergio Caprioglio (org.). Turim: Einaudi, 1980, p. 100.

Referências bibliográficas

BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte: anos oitenta e novos tempos. São Paulo: Perspectiva; Porto Alegre: Fundação IOCHPE, 1991.

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 9 ed. São Paulo: Olho d’Água, 1998. 127 p.

MOSS, Peter. Encontros e desencontros da educação infantil.

NOSELLA, Paolo. A linha vermelha do planeta infância: o socialismo e a educação da criança. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv245.htm. Em 21 de julho de 2001.

PILLOTTO, Silvia Sell Duarte e MOGNOL, Letícia Coneglian. Propostas para a arte na educação infantil. [on-line]. Disponível na internet via www. Url: http://www.artenaescola.org.br/fr_artigos.html. Em 13 de julho de 2004.

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